Tema: “Os desafios para a valorização das comunidades e povos tradicionais do Brasil“
Maria Clara Quintanilha Tavares
Durante o processo de colonização brasileira, iniciado no século XVI, a estratégia de dominação empregada pela Coroa Portuguesa consistia, além da violência física para a escravização dos povos nativos, na violência cultural, por meio da desvalorização dos costumes desses povos e da imposição de seus próprios conceitos de comportamento e religiosidade. Como resultado desse desrespeito à alteridade, a hegemonia europeia foi estabelecida na América, e a identidade nacional foi construída com base, principalmente, em princípios estrangeiros. Por essa razão, atualmente, dois séculos após a Independência, a importância da cultura nativa ainda não foi resgatada. Mesmo que a valorização de comunidades e povos tradicionais – não só indígenas, mas também ciganos e pescadores, por exemplo – no Brasil, seja essencial para a diversidade cultural do país, essa noção é ignorada para benefício de dinâmicas econômicas.
Primeiramente, é preciso destacar a importância da valorização das populações tradicionais brasileiras para a formação de uma nação rica em diversidade cultural. Para as Ciências Sociológicas, a coexistência de diferentes formas de organização social e expressão cultural é de grande valor para a construção de uma comunidade plural, com aspectos identitários sólidos, na medida em que o contato saudável entre perspectivas e realidades diversas amplia as noções de tolerância e de respeito na sociedade. Nesse sentido, a valorização dos povos tradicionais que têm como herança conhecimentos ancestrais diversificados, transmitidos entre gerações por meio de suas práticas e rituais, é indispensável para a formação de uma acervo cultural nacional extremamente rico, de acordo com a Sociologia.
Entretanto, essa valorização é negligenciada, principalmente, por conta de uma lógica mercadológica. De fato, mesmo após o fim do domínio lusitano, os povos originários do Brasil continuam sob ameaça de violação de seus direitos, diante da perpetuação das práticas exploratórias baseadas na dinâmica capitalista. Com o fortalecimento do Ciclo da Borracha, por exemplo, durante a Segunda Revolução Industrial, a atividade extrativista predatória e ilegal, na Amazônia, aumentou intensamente, de modo que a invasão das terras ocupadas por povos tradicionais tornou-se um artifício comum para a obtenção do látex das seringueiras. Nesse cenário, os conflitos agrários violentos ocasionaram o extermínio de populações locais e, como consequência, a perda de suas tradições. Diante disso, é possível relacionar a desvalorização dessas comunidades à lógica de exploração de recursos naturais para a garantia do lucro.
Fica claro, portanto, que a valorização dos povos tradicionais, no país, apesar de ser importante para a diversidade cultural, enfrenta desafios relacionados aos ideais capitalistas. Para mudar essa realidade, é preciso que, além de estabelecer projetos educacionais que destaquem a necessidade de preservação dessas populações, o Estato institua ações de combate às práticas ilegais de invasão de terras, por meio do aumento da fiscalização das áreas habitadas por povos ameaçados. Isso pode ser feito, por exemplo, com o aumento do contigente de profissionais responsáveis por essa segurança, a fim de garantir a sobrevivência dessas comunidades e, com isso, preservar seus saberes. Assim, espera-se que a importância da cultura nativa seja, enfim, resgatada e consolidada.
Tema: 2021 “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”
Luiza de Souza Mamede
Uma referência quando o assunto é democracia é a antiga cidade grega Atenas, onde surgiu essa forma de governo com a participação popular na política e a valorização da cidadania, a qual, contudo, era bastante restrita, visto que excluía mulheres, estrangeiros e escravos. Nesse sentido, é possível observar que o Brasil atual vive uma situação análoga à ateniense, dado que, mesmo sendo uma democracia – neste caso, indireta – quase 3 milhões de brasileiros, segundo projeção do IBGE, não possuem registro civil, não sendo por isso, reconhecidos como cidadãos. Assim, torna-se imprescindível discutir essa situação, pois ela repete erros antigos ao privar grupos sociais da participação democrática e se perpetua por conta da morosidade do Estado que afeta direitos constitucionais.
Sob essa ótica, cabe frisar que a garantia de registro civil a todos os brasileiros é essencial e urgente porque permite a sua participação na sociedade. Acerca disso, o filósofo grego Aristóteles, segundo o conceito de Zoon Politikon, afirmava que o ser humano é um animal político e que a sua finalidade é a obtenção da felicidade, adquirida ao exercer o que lhe é substancial: pensar e viver em sociedade.
Dessa forma, evidencia-se a problemática da falta de acesso à cidadania no Brasil, uma vez que as pessoas que não são reconhecidas pelo Estado, devido à falta de documentação, são, por conseguinte, privadas da participação política e negligenciadas pela sociedade, impedidas de exercer a sua finalidade e alcançar a felicidade.
Ademais, é válido apontar que essa exclusão política e social vem sendo perpetuada pela lentidão administrativa do Estado. Nesse contexto, relembra-se que o sociólogo Gilberto Dimenstein, em sua obra “O Cidadão de Papel”, afirma que, embora o Brasil possua um sólido aparato legislativo, ele mantém-se restrito ao plano teórico. Dessa maneira, verifica-se a materialização do apontado por Dimenstein no fato de que os direitos previstos na Constituição Cidadã de 1988 não são garantidos a todos os brasileiros na prática, o que ocorre em grande parte devido à burocracia e à morosidade do Estado, que dificultam o registro dessas pessoas. Logo, sem documento, esses cidadãos invisíveis são privados do pleno acesso aos seus direitos constitucionais.
Portanto, infere-se que é mister que o Estado – cumprindo seu papel de garantir a cidadania a todos os brasileiros e de efetivar a Constituição Federal – combata as razões de sua própria lentidão por meio do destino de verbas para a construção de novas zonas de registro e para a contratação de profissionais para esse fim. Isso deve ser feito a fim de que não mais existam grupos excluídos da participação democrática, como ocorria em Atenas, e se garantam cidadania e os direitos, além da plena vivência política, a toda a população do Brasil.