As diferentes faces do riso
Riso: uma faca bem afiada
De acordo com o filósofo grego Aristóteles, a arte consiste em uma forma exemplar da expressão humana por conta de sua função catártica, isto é, as obras têm a capacidade de expor os mais variados aspectos da vida social, de modo a sensibilizar o público e estimular reflexões acerca do tema abordado. Nesse contexto, a catarse aristotélica se faz presente no riso, uma vez que a comédia e as diversas formas da arte do rir são maneiras de evidenciar as inquietações da vida humana, promovendo o debate sobre inúmeras instâncias sociais. Diante disso, o riso constitui tanto uma manifestação crítica da sociedade quanto uma forma de resistência às adversidades.
De início, é preciso entender o riso enquanto instrumento de denúncia às mazelas sociais. Nesse sentido, produções artísticas focadas no humor, como o cinema mudo, podem servir de meio à exposição de injustiças que corroem o corpo social. Por exemplo, no início do século XX, auge do desenvolvimento industrial norte-americano, era frequente a exploração dos trabalhadores nas fábricas, os quais eram submetidos a condições desumanas de trabalho e recebiam salários irrisórios. Tal cenário não escapou aos olhos atentos do ator e cineasta Charlie Chaplin, que retratou em seu célebre filme “Tempos Modernos” as atrocidades sofridas pelos operários, imortalizadas pela cena em que o protagonista Carlitos é engolido pelas engrenagens da indústria. Dessa maneira, nota-se como Chaplin escancara de modo contundente os problemas sociais por meio do riso, o que configura a função crítica dessa manifestação humana.
Além disso, o riso se mostra eficiente na luta contra as condições adversas que se impõem aos indivíduos. Nessa perspectiva, o ato de rir diante das dificuldades não significa ignorá-las, pelo contrário, o sujeito que ri dos obstáculos mostra plena consciência de que deve enfrentá-los de maneira decidida e alegre, mostrando-se mais forte do que aqueles que tentam prejudicá-lo. Essa noção de superação já era prevista pela mitologia grega, nas narrativas da viagem de Ulisses, herói da Guerra de Troia, que enfrenta a fúria dos mares e inúmeros percalços sem se deixar abalar, até que enfim chega a Ítaca, sua terra natal. Tal é o poder do riso enquanto ato de resistência: empoderar o sujeito para que ele possa transgredir as intempéries.
Portanto, o riso demonstra sua função catártica e se consolida como componente fundamental da existência humana na medida em que expõe os desvios da sociedade e incita à reflexão e ao combate a esses imbróglios. Assim, as diferentes faces de uma boa risada revelam-na como uma espécie de faca bem afiada, que, ao mesmo tempo, causa cortes incisivos por sua crítica e protege seu usuário das adversidades que o cercam.
O mundo contemporâneo está fora de ordem?
“Ao vencedor, as batatas!”
O “Humanitismo”, teoria filosófica usada no livro “Quincas Borba”, de Machado de Assis, apresenta como máxima: “Ao vencedor, as batatas, ao perdedor, o ódio ou a compaixão”. Esse princípio, além de exemplificar a própria obra, também se configura como uma ordem para organização da sociedade: instaurar a competição permanente entre os indivíduos e, assim, além de excluir os perdedores, deve-se permitir que os vencedores validem essa exclusão a partir do ganho de recompensas. Sendo assim, esse princípio ultrapassa a ficção e aplica-se na configuração da sociedade atual, criando – a partir dos próprios indivíduos -, involuntariamente, uma nova ordem mundial, que seleciona, de forma artificial, os habitantes que devem ser inclusos socialmente. Dessa forma, o mundo contemporâneo não se encontra desordenado, mas sim pautado na ordem da competição e da exclusão atual.
Vale ressaltar, sob essa perspectiva, que a base da competição social é caracterizada pela tentativa de se alcançar a construção imagética do vencedor, essa que se dá a partir da padronização do comportamento humano – utilizando, principalmente, o desejo de consumo -, associado à criação de uma ideologia pautada na meritocracia, produtividade e passividade. Isso desencadeia, por sua vez, a difusão e incorporação social da tal imagem a ser alcançada, símbolo do sucesso socioeconômico e modelo a ser seguido. Consequentemente, todo o corpo da sociedade passa a interagir buscando essa simbologia, competindo permanentemente entre si, seja no mercado de trabalho, seja a partir das interações sociais. Sendo assim, essa constante luta irracional por um objetivo ficcional é característica da “sociedade do espetáculo” – princípio criado pelo pensador Guy Debord -, a qual se afirma que os indivíduos abdicam da racionalidade na busca por um ideal imagético e isso legitima, assim, essa competição interna. Logo, a ordem contemporânea, ao utilizar do ideal do vencedor, busca consolidar seus próprios princípios.
Considera-se, além disso, que os indivíduos, vítimas da competitividade contemporânea, que permanecem distantes do ideal do vencedor, passam a ser intitulados como “perdedores sociais”, passíveis, então, de exclusão do ambiente em que vivem. Essa exclusão, por sua vez, pode ser realizada de forma indireta, através da carência de acesso a direitos e a recursos básicos para a dignidade humana, ou de forma direta, realizada através da institucionalização da violência e o uso dela por setores poderosos na sociedade. Assim, o sistema organizado passa a repercutir o que o filósofo contemporâneo Achille Mbembe passou a chamar de “necropolítica”, que se caracteriza a partir da ação organizada dos Estados no mundo todo ao definir “o sujeito que deve morrer”, ou seja, as minorias de uma sociedade, além de excluídas dos benefícios institucionais, também passam a ser vítimas de genocídios para sua eliminação da população, o que caracteriza, dessa forma, sua derrota frente à competição social atual. Sendo assim, a ordem no mundo contemporâneo determina a exclusão dos “perdedores” do século XXI.
Portanto, o princípio do “Humanitismo”, aplicado à geração atual, determina, de forma direta, aqueles que devem ser beneficiados pela validação social e, assim, detentores das “batatas”, e aqueles perdedores da competição instaurada, passíveis de exclusão. Assim, esse processo se dá a partir da espetacularização do indivíduo de sucesso, como ideal de vencedor e modelo final a ser alcançado. Paralelo a isso, a “necropolítica” instrumentaliza a eliminação dos perdedores, a fim de manter a seleção artificial atual. Sendo assim, consolida-se a ordem da competição, norteadora do mundo contemporâneo.